Enílvia Rocha Morato Soares
Professora aposentada da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal
Mestra e doutora em Educação
Integrante do Grupo de Pesquisa Avaliação e Organização do Trabalho Pedagógico
Estudos que tratam da avaliação afirmam ser esta uma prática que, quando conduzida com ética e compromisso político, tem na aprendizagem seu par indissociável. Considerando a escola uma instituição onde o ato de avaliar é potencialmente realizado, o esperado seria que as aprendizagens ocorressem na mesma proporção. No entanto, o alto número de crianças e adolescentes que, mesmo estando na escola, não transita pelos anos escolares conforme se espera[1], comprova não ser tão harmônica assim essa parceria, o que conduz à adoção de diferentes políticas que visam reverter esse quadro.
O ingresso tardio na escola e a repetência escolar são fatores que conduzem ao elevado número de estudantes cuja idade não condiz com o ano escolar considerado adequado à sua faixa etária. Se levarmos em conta o grande avanço evidenciado nas últimas décadas referente ao acesso das crianças à escola, em atendimento Lei nº 11.274 sancionada em 2006, que estabelece a ampliação do Ensino Fundamental de 8 para 9 anos, com matrícula obrigatória para crianças aos 6 anos de idade, pode-se inferir que a maior parte dos estudantes que se encontram situação de defasagem idade-ano escolar provém de reincidentes repetências.
Ao distinguir repetência de reprovação, Coimbra (2008) nos alerta para a variedade de motivos que acarretam a interrupção do percurso escolar e a repetição do ano em curso, sendo a reprovação apenas um deles.
Desse modo, pode-se afirmar que a adoção de políticas voltadas à correção do fluxo escolar não se deve única e exclusivamente às sucessivas reprovações ocorridas ao longo da vida escolar dos estudantes. É certo dizer ainda que as reprovações não decorrem necessariamente da falta de aprendizagem ou da forma seriada de organizar a escola, uma vez que, mesmo nesse contexto, a avaliação pode ser conduzida no sentido de promover aprendizagens e o avanço ininterrupto dos estudantes.
No entanto, não há como negar que políticas de correção de fluxo lidam, em grande medida, com estudantes que vivenciaram a reprovação reiteradas vezes, ou seja, que integraram o sistema seriado e, por isso, foram, em algum momento, avaliados com fins classificatórios e seletivos. É aí que se instaura a perversidade dessa forma de organização escolar: ela conta, de antemão, com a possibilidade de que parte dos estudantes não conseguirá aprender e transitar regularmente pelos anos escolares. A posterior aceleração desse processo constitui iniciativa de reparação, pela escola, do prejuízo causado por ela mesma e a reprovação seria, senão a principal, ao menos uma das grandes vilãs dessa história.
Isso significa que a homogeneização de tempos e espaços escolares, recurso distintivo da organização escolar por níveis ou séries e oriunda da necessidade de atendimento a um grande contingente populacional, não serviu ao propósito de democratizar a escola como instituição promotora do conhecimento.
A importante conquista do direito de aprender, assegurado legalmente desde a Constituição Federal de 1988, não impediu que os saberes veiculados pela escola continuassem restritos a alguns, mantendo exclusos os que não conseguem atender aos espaços, tempos e formas estabelecidas por ela, em sua maioria, os estudantes oriundos das classes populares que só mais recentemente puderam nela ingressar. A reprovação se mostra, assim, uma construção histórica para responder ao paradigma da escola como privilégio (Jacomini, 2010).
Todo esse engodo não seria possível sem a adoção de práticas capazes de camuflar o poder elitizante da escola, revestindo-a de aparência democrática. A reprovação se apresenta como elemento potencializador desse movimento, quando permite, não só impedir que todos progridam ininterruptamente, mas principalmente quando induz à ideia de responsabilização do próprio educando – ou, no máximo, de sua família – por sua trajetória escolar, seja ela exitosa ou não. O discurso do mérito pelo esforço pessoal seria suficiente para explicar os sucessos e insucessos, isentando ou, pelo menos minimizando, a responsabilidade da escola e da sociedade do compromisso social de assegurar a todos o inalienável direito de aprender.
O poder da escola assegurado pela reprovação é exercido, de modo especial, pelos professores. Segundo Jacomini (2010), os professores acreditam que têm, na reprovação, um poderoso meio capaz de fazer com que os estudantes se dediquem aos estudos a fim de evitarem a retenção. O que precisa ser entendido é que, muitas vezes a falta de aprendizagem não decorre da falta de dedicação. Nesse caso, o efeito da ameaça da reprovação pode repercutir de modo contrário, desestimulando ainda mais os estudantes que apresentam necessidades específicas de atendimento. Além disso, o prazer de aprender não pode ser substituído pela barganha estudo-nota sob pena de condicionar a busca pelo conhecimento a alguma forma de compensação.
Um argumento comumente utilizado pelos professores em defesa do direito de definir o futuro escolar dos estudantes e ameaçá-los por meio da reprovação se vale da possibilidade de, dessa forma, garantir maior qualidade à educação. Os altos índices de reprovação e evasão fartamente divulgados pela mídia contestam facilmente esse raciocínio, denunciando a baixa qualidade do ensino. O máximo que a reprovação consegue, nesse caso, é afastar da escola aqueles que não aprendem, mantendo nela apenas os que se submetem aos seus ditames. Mais uma vez a reprovação se mostra a serviço da educação como privilégio (JACOMINI, 2010).
A crença de que a reprovação serviria para possibilitar uma nova chance de aprendizagem ao estudante também é desmistificada pela autora (idem) quando alerta para o fato de que o alcance dos objetivos educacionais está vinculado às condições de ensino oferecidas pela escola e às condições sociais e materiais dos alunos para a conquista da aprendizagem e não ao fato de o aluno ser reprovado.
Mesmo ocorrendo ao final de períodos letivos, a retenção de estudantes resulta de práticas que se desenvolvem no decorrer desse espaço de tempo. A padronização de metodologias, procedimentos de ensino e práticas avaliativas, influenciada pela crença em tempos e modos homogêneos de aprender dos sujeitos constitui uma delas. Esse entendimento desconsidera a complexidade que caracteriza os processos de aprendizagem humana, tanto no que se refere à capacidade cognitiva como em relação às experiências vivenciadas por cada indivíduo, que promovem e acentuam diferenças. A reprovação representa, assim, o parecer final acerca de um processo em que as condições do estudante, personagem principal desse cenário, foram secundarizadas, senão, desconsideradas.
Destaco, de modo especial, a padronização da avaliação como forte aliada da reprovação. Estabelecer padrões mínimos e gerais de exigências, independentemente das condições específicas de aprendizagem de cada estudante, constitui obstáculo ao progresso de parte significativa deles. Segundo Hoffmann (2005, p. 17), “a busca incansável por padrões de mensuração e objetivos uniformes é um dos maiores entraves a um processo avaliativo em respeito à individualidade do educando”.
A possibilidade de reprovar conduz a uma prática pedagógica hierarquizada, que destitui professores e estudantes da possibilidade de organizar, conduzir e avaliar colaborativamente o trabalho pedagógico, além de induzir docentes a dicotomizar os processos de ensino e aprendizagem, isentando-se da responsabilidade de buscar meios para tornar realidade a indissociabilidade dessas duas práticas. Propiciar as condições adequadas para que todos possam aprender requer a convicção de que isso é possível, como o esforço para organizar a escola em função das diferentes necessidades e percursos de formação dos estudantes, variando o modo e a intensidade do acompanhamento pedagógico. A reprovação, que compreende, forçosamente, avaliar para selecionar, não se insere nessa lógica.
A avaliação formativa e o fluxo das aprendizagens pelos anos escolares
Embora não constitua política de correção de fluxo, os ciclos têm, segundo análise de pesquisas sobre o tema, realizado por Barreto (2008, p. 202), contribuído para a “melhoria da correção idade-série e da correção do atraso escolar”. As benesses desse avanço não podem, no entanto, limitar-se aos dados gerados pela não-reprovação. Nesse caso, o que se coloca em prática é a aprovação automática, que em nada contribui para a formação dos estudantes, por estar dissociada da necessária construção de aprendizagens. Isso significa que, mesmo que represente uma nova lógica de organização do trabalho escolar e se apresente com o propósito de democratizar o ensino, de modo a possibilitar a permanência do estudante na escola e seu livre trânsito pelos anos escolares, a organização escolar em ciclos pode também servir para camuflar a baixa qualidade do ensino.
Além de extinguirem a reprovação do final de anos escolares, os ciclos impõem, para sua concretização, o redirecionamento de concepções e a reconfiguração de práticas tradicionalmente sedimentadas no meio escolar. O modo de conceber e concretizar a avaliação se insere nesse contexto, podendo determinar o êxito ou fracasso da nova forma de organizar a escola. Em outras palavras, a constituição de uma nova escola requer um novo significado para a avaliação.
A complexidade, as ambiguidades e as contradições presentes na dinâmica aprovação/reprovação não permitem, com segurança, atribuir, somente à avalição, a responsabilidade pelas intercorrências que se apresentam nesse percurso. No entanto, pensar a avaliação como processo de mediação entre o ensino e a aprendizagem com condições de diferenciar a ação educativa, conduzindo-a segundo o conhecimento que se constrói sobre o que já foi e o que ainda precisa ser ensinado/aprendido, coloca-a em situação de destaque.
Avaliar visando ao avanço permanente das aprendizagens constitui princípio da avaliação cuja função é formativa, que torna a escola capaz de cumprir seu papel social de possibilitar a todos o direito e aprender. A progressão continuada das aprendizagens, recurso indissociável da avaliação formativa e da organização escolar em ciclos, reúne condições para evitar que parte dos estudantes se distancie dos demais por meio do atendimento imediato às suas necessidades específicas.
Diferente de centrar esforços para conseguir a aprovação e esquivar-se da reprovação, o objetivo de aprender passa a ser o foco. A avaliação formativa, por meio do diagnóstico permanente das reais condições dos estudantes, viabiliza o alcance desse fim, por estimular, de modo adequado, o avanço do conhecimento. O propósito é fazer ruir a ideia de aprovar/reprovar em favor do aprender/progredir.
Como a maioria das escolas brasileiras é ainda seriada, a avaliação formativa, propulsora das aprendizagens dos estudantes ao longo do ano letivo serve, em decorrência, à aprovação de todos os estudantes. Livrar-se das amarras impostas pela díade aprovação/reprovação é o primeiro passo. A busca pelo saber deve preponderar e seu domínio é extensivo a todos. É uma prática que exige esforços, em especial porque vivemos em uma sociedade em que vencer é para poucos e os meios utilizados para isso podem variar. Diferentes estratégias costumam ser utilizadas e diferentes são os critérios utilizados para a aprovação ou reprovação dos estudantes. Em muitos casos, são decisões dissociadas das aprendizagens por eles conquistadas. O cumprimento do seu “ofício de aluno” (Perrenoud, 1995), ou seja, a integração pacífica ao modelo de socialização proposto pela escola pode ser uma dessas estratégias e/ou critérios utilizados.
Constituir uma escola pautada pela inclusão implica compromisso político. Isso porque esse movimento não se efetiva imune a influências externas. O trabalho realizado em sala de aula pelo professor é influenciado pelo modo como a escola se organiza e pela maneira de ela incorporar os objetivos do meio social em que se encontra imersa. Em um país como o nosso, organizado em classes que se distinguem pelas riquezas que acumulam sob o simulacro do discurso do mérito decorrente do esforço individual, a escola tem servido para ratificar, senão, potencializar as desigualdades econômicas, servindo-se da avaliação como instrumento de classificação e seleção daqueles que prosperarão (Freitas, 1995).
Ainda segundo o autor (idem), para que cumpra sua função formativa, os resultados da avaliação devem informar aos sujeitos envolvidos, as condições reais de um dado momento, confrontando-as com o objetivo idealizado. Compõe-se, desse modo, o par dialético objetivo/avaliação, que, articulado ao par conteúdo/método, permite que o trabalho pedagógico seja organizado com base na natureza dinâmica e contraditória destas categorias, abandonando, assim, a forma linear e unilateral como costumam ser conduzidos os processos pedagógicos. Ao invés de acontecer em momentos isolados e finais, a avaliação permeia todo o processo, estendendo seu olhar para além do desempenho dos estudantes, incidindo, especialmente, sobre o modo como está sendo organizado e desenvolvido o trabalho pedagógico. É essa a dinâmica que possibilita revisar e reorientar percursos escolares rumo à conquista permanente de novas aprendizagens.
Permitir que os estudantes percorram os períodos escolares aprendendo, seja sem interrupções entre anos (como acontece nas escolas organizadas em ciclos) ou por meio de sucessivas aprovações (como ocorre em escolas seriadas), requer o entendimento de que todos são capazes de aprender, embora em tempos e de maneiras diversas. A relação entre professor e estudantes deve, portanto, alicerçar-se no acolhimento (Caldart, 2013), na ética e na confiança. São sentimentos passíveis de serem expressos por meio da avaliação informal, rotineiramente presente no espaço escolar. Essa modalidade avaliativa, que acontece por meio de comentários, olhares e gestos, pode ser decisiva para que os estudantes, uma vez seguros de sua capacidade de progredir, o façam sem percalços. A “[…] interação [que se estabelece por meio da avaliação informal] pode ser saudável se trouxer ações de encorajamento” (Villas Boas, 2008, p. 43). Hadji também evidencia preocupação com a avaliação informal alertando para o quão devastadores podem ser os efeitos das mensagens implícitas sob o sentido aparente das palavras, bem como para “a necessidade de substituir palavras que machucam por palavras que ajudam” (Hadji, 2001, p. 111).
Como já alertado, seria reducionismo ingênuo apontar a avaliação conduzida de forma indevida, seja ela formal ou informal, como causa única ou maior do sucesso ou insucesso escolar. Porém, não há como negar a relevância dessa prática como elemento norteador do trabalho pedagógico que dá sentido e impulsiona o ato de aprender. Cuidar para que a avaliação formativa se torne realidade nas escolas pode contribuir significativamente não só para colocar em dia as aprendizagens dos estudantes cuja idade se encontra incompatível com o ano escolar em curso, mas principalmente para evitar a necessidade da criação de políticas específicas para esse fim.
Para reflexão:
A necessidade da criação de políticas de correção e fluxo provém, dentre outros fatores, da reprovação que, segundo Jacomini (2010), constitui uma construção histórica que restringe o saber escolar a uma parcela dos estudantes. Não condiz, portanto, com o direito de todos aprenderem, assegurado legalmente desde a Constituição Federal de 1988. O objetivo de democratização da aprendizagem tem encontrado obstáculos que precisam ser superados sob pena de que a produção e o reforço às desigualdades se perpetuem. Refletir sobre o papel ocupado pela avaliação nesse processo é o que aqui se propõe:
- A forma como a escola se organiza contribui para que os estudantes avancem pelos anos escolares aprendendo? Em que sentido?
- Considerando a indissociabilidade entre avaliação e aprendizagem, como explicar a reprovação de parte dos estudantes (ano a ano, no caso da seriação ou em alguns deles no caso dos ciclos)?
- As diferentes crenças alimentadas por parte dos professores em relação à reprovação contribuem para uma visão distorcida da avaliação e para a rejeição da escola organizada em ciclos. Como isso se dá?
- O entendimento de que a avaliação serve para aprovar ou reprovar contribui para o aumento do número de estudantes cuja idade é incompatível com o ano escolar em curso. Como superá-la?
- Sua escola costuma discutir sobre a forma como é organizada? Como se posiciona a maioria dos profissionais? A organização escolar em ciclos costuma ser tema de estudos? A avaliação é destacada nessas discussões?
Referências
BARRETO, Elba Siqueira de Sá. As escolas em ciclos e seus resultados no processo ensino-aprendizagem. In: FETZNER, Andréa Rosana. (Org.). Ciclos em revista. Avaliação: desejos, vozes, diálogos e processos. V. 4. Rio de Janeiro-RJ: Wak, 2008.
BRASIL. Ministério da Educação. Diretoria de Estatísticas Educacionais – DEED. Censo Escolar da Educação Básica: Resumo Técnico.Brasília-DF: Inep/MEC 2025.
CALDART, R. S. Sobre as tarefas educativas da escola e a atualidade. São Paulo: Expressão Popular, 2023.
COIMBRA, Sandra Regina da Silva. Reprovação e interrupção escolar: contribuições para o debate a partir da análise do projeto classes de aceleração. Tese (Doutorado em Educação. UFSC: Santa Catarina-SC, 2008.
FREITAS, Luiz Carlos de. Crítica da organização do trabalho pedagógico e da didática. Campinas-SP: Papirus, 1995.
HADJI, Charles. Avaliação desmistificada. Porto Alegre-RS: Artmed, 2001.
HOFFMANN, Jussara. Pontos e contrapontos: do pensar ao agir em avaliação. Porto Alegre-RS: Mediação, 2005.
JACOMINI, Márcia Aparecida.. A. Educar sem reprovar. São Paulo-SP: Cortez, 2010.
PERRENOUD, Philippe. Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Trad. Júlia Ferreira. Porto, Portugal: Porto Editora Ltda, 1995.
VILLAS BOAS, Benigna Maria de Freitas. Virando a escola pelo avesso por meio da avaliação. Campinas-SP: Papirus, 2008.
[1] Embora se perceba uma tendência de queda, a quantidade de crianças e adolescentes com dois anos ou mais de atraso em relação ao ano escolar considerado adequado à sua idade é confirmada pelo Censo Escolar 2024 (Brasil, 2025) que aponta o índice de 13,3% de estudantes que cursam o ensino fundamental das escolas públicas.