Benigna Maria de Freitas Villas Boas
Mestra e doutora em Educação
Professora Emérita da UnB
Coordenadora do Grupo de Pesquisa Avaliação e Organização do Trabalho Pedagógico – GEPA
Integrante do Observatório da Educação Básica, da Faculdade de Educação da UnB
“Com a emergência da pandemia de Covid-19, a educação enfrentou desafios sem precedentes, levando a uma reflexão mais profunda sobre as práticas pedagógicas e a necessidade de adaptação diante das novas realidades. Nesse contexto de crise, o conceito de “recomposição das aprendizagens” surge como uma abordagem inovadora e essencial para enfrentar as lacunas educacionais causadas pela interrupção das atividades escolares tradicionais”. BACILA, Maria Sílvia (org.). Recomposição das aprendizagens: políticas públicas, práticas pedagógicas, formação continuada [recurso eletrônico], 2024. (p. 12)
A expressão recomposição das aprendizagens entrou em cena quando as escolas voltaram a trabalhar presencialmente com os estudantes depois do período crítico da pandemia da Covid 19. A ideia não é nova. A novidade é a ênfase que passou a receber.
A palavra recompor significa reorganizar, reordenar, reconstituir. Pressupõe algo que esteve ou está em construção e que necessita ser retomado. É o caso das aprendizagens escolares que, durante a pandemia, ficaram paralisadas ou realizadas parcialmente, de forma virtual ou atendimento indireto. Ao reiniciarem as atividades, as escolas desconheciam a situação de aprendizagem de cada estudante, sendo necessário dedicarem tempo ao processo de avaliação diagnóstica para planejarem o retorno ao trabalho pedagógico desenvolvido presencialmente. Feito isso, foi e ainda está sendo possível, em alguns casos, recompor as aprendizagens, isto é, reorganizá-las, para que possam avançar.
A recomposição das aprendizagens não era conhecida pelas escolas antes da pandemia da Covid 19. Surgiu como uma abordagem inovadora e essencial para enfrentar as lacunas educacionais causadas pela interrupção das atividades tradicionais, explica Bacila (2024, p. 1). Até então conhecíamos a recuperação de estudos, prevista pela Lei 5.692/71, que estabelecia as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), e pela Lei 9.394, de 1996, segundo a qual os estabelecimentos de ensino têm a incumbência de “prover meios para a recuperação dos alunos de menor rendimento” (art. 12). Este dispositivo legal ficou conhecido por sua estreita concepção de avaliação. Em obediência a essa lei os sistemas de ensino até hoje usam a palavra “recuperação”, inapropriada porque não se “recuperam os alunos de menor rendimento” nem se “recuperam aprendizagens” que não existiram. A responsabilidade da escola consiste em oferecer meios que promovam as aprendizagens de todos os estudantes.
A recomposição das aprendizagens não é episódica, mas continuamente desenvolvida, tendo a avaliação diagnóstica como seu ponto de partida. Constitui um processo no qual os estudantes se engajam em estudos e atividades devidamente organizadas para que possam colocar em dia suas aprendizagens de modo a prosseguirem seus estudos com êxito. Resulta da prática de os/as professores/as investigarem continuamente as necessidades de aprendizagem de todos os estudantes para que, prontamente, reconstituam as aprendizagens incompletas. Com essa compreensão, a recomposição das aprendizagens não se coloca ao lado da recuperação. Ela a engloba. Trata-se de um amplo processo constituído de ações que possibilitam aos estudantes manterem em dia suas aprendizagens. Como a “recuperação dos alunos” é obrigatória pela Lei 9.394, de 1996, ao inserir em sua proposta pedagógica ou projeto político-pedagógico a recomposição de aprendizagens, cada escola poderá explicitar que ela se integra a esse processo.
A pedido da Fundação Lemann e do Instituto Natura, o Vozes da Educação elaborou “levantamento internacional sobre estratégias de recomposição das aprendizagens, a partir do comportamento de diversos países do mundo, bem como programas já implementados por organismos internacionais” (Vozes da educação, 2021). O trabalho destinou-se a subsidiar as redes de ensino para estruturarem alternativas capazes de recompor as perdas do último ano e meio. Apenas no Brasil 5,1 milhões de crianças ficaram fora da escola em 2020, segundo dados do Unicef e do CENPEC. Após a conclusão do trabalho do Vozes da educação, oito estados brasileiros estavam com escolas abertas ou parcialmente abertas.
Os países que participaram desse estudo são os seguintes: América (Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Estados Unidos, Haiti e Uruguai); África (Botswana, Costa do Marfim, Etiópia, Gana, Libéria, Madagascar, Moçambique, Mali, Niger, Nigéria, Quênia, Serra Leoa, Uganda e Zâmbia); Ásia (Afeganistão, Bangladesh, Índia e Singapura); Europa (França, Irlanda e Portugal); Oceania (Austrália). Esses países usaram diferentes estratégias para a recomposição das aprendizagens. Puderam ser identificadas adaptações no currículo, tempo de instrução, práticas pedagógicas, formação docente específica, avaliação diagnóstica, material didático apropriado, monitoramento da evasão, ensino híbrido e mapeamento de competências socioemocionais, relata o documento.
Os principais achados do trabalho desenvolvido pelo Vozes da educação são apresentados em uma das páginas iniciais do documento, sem numeração:
“Especialistas de diversos países entendem que o processo de remediação (aulas de recuperação) não é a forma mais efetiva para recompor as aprendizagens. Nos Estados Unidos o debate se intensificou e as redes estão dando preferência para a aceleração ou a priorização curricular”.
“Muitos países e programas optam pela contratação de jovens profissionais, recém-formados ou que estejam cursando os últimos anos dos cursos de licenciatura ou pedagogia para atuarem como professores de escolas de verão”.
“Investimentos vultosos em programas e estratégias de recomposição de aprendizagem estão sendo feitos no pós-pandemia. Em Portugal o governo destinará mais de 900 milhões de euros para a recuperação de aprendizagem e, na Austrália, em apenas um projeto de tutoria foram investidos 600 milhões de dólares australianos”.
“Uma das estratégias para recompor as perdas de aprendizagem é o aumento do tempo de instrução, que pode se dar aos finais de semana, durante as escolas de verão ou com alteração do calendário escolar”
“A aceleração do processo de aprendizagem compreende diversas estratégias: tempo de ensino, práticas pedagógicas, avaliações diagnósticas, formação docente específica e material didático apropriado”.
“As estratégias de adaptação curricular mais comuns em programas de recomposição de aprendizagens incluem priorização das habilidades curriculares ou aceleração das aprendizagens. Neste caso, o foco tem sido colocado nas habilidades estruturantes de linguagem e matemática”.
“Os países optaram por diferentes tipos de avaliação diagnóstica para o pós-pandemia, mas vários apostaram na compreensão integral de cada estudante. Enquanto a Irlanda recomendou que os professores desenvolvessem um processo de co-investigação, os Estados Unidos investiram em uso de inteligência artificial para personalizar o diagnóstico (p. 45). O Chile incluiu análise das competências socioemocionais”.
O documento Vozes da educação (2021) encontrou dois tipos de ação desenvolvida pelos diferentes países: mitigação das perdas e recomposição das aprendizagens. A mitigação das perdas consistiu apenas em formas de aliviá-las, aplacá-las, por meio de estratégias para minimizar seus danos na aprendizagem: ações para melhorar a qualidade do ensino remoto emergencial, combater a evasão escolar, aprimorar o ensino híbrido, garantir um retorno presencial seguro às escolas e assegurar o bem estar emocional dos estudantes” (p. 8). Embora o Brasil não tenha sido incluído no levantamento organizado pelo documento Vozes da educação, podemos dizer que, em um primeiro momento, suas ações se voltaram para a mitigação das perdas.
Nesse mesmo documento a recomposição das aprendizagens é apresentada por meio de três ações: remediação, intervenção e aceleração. A “remediação ou reteaching” é desenvolvida quando toda a turma precisa de apoio, seja porque a explicação foi insuficiente, seja porque os estudantes passaram muito tempo longe da escola” (p. 8).
A intervenção é o “processo formal para apoiar alunos com dificuldades de aprendizagem. Práticas educacionais específicas devem ser utilizadas e o processo deve ser constantemente monitorado” (p. 8).
A aceleração é constituída por “programas que diagnosticam a perda e colocam cada aluno em um caminho rápido de volta ao nível da série por ele cursada. Ao invés de ofertar atividades adequadas a séries anteriores a fim de preencher todas as lacunas no aprendizado, a aceleração se concentra em preencher apenas as lacunas mais críticas, no momento adequado, por meio de trabalhos apropriados à série atual. Esses programas são utilizados para crianças e jovens que nunca frequentaram a escola, ou que passaram muito tempo sem acesso à educação formal” (p. 8).
O documento em análise pontua que nas redes de ensino ao redor do mundo prevaleceu a estratégia de aceleração das aprendizagens. Um desses programas tem como objetivo “oferecer aceleração curricular aos jovens afegãos que, em razão do regime talibã, foram privados do direito de frequentar as escolas. O foco eram as meninas, as mais afetadas pelo regime. O programa de educação acelerada trabalhou 2 ciclos letivos em apenas um ano” (p. 15).
A aceleração das aprendizagens compõe-se das seguintes estratégias, diz o documento: adaptação do currículo, adaptação do tempo de instrução, adaptação de práticas pedagógicas, avaliação diagnóstica, formação docente específica e material didático apropriado. Neste caderno daremos destaque à adaptação de práticas pedagógicas, à avaliação diagnóstica e à formação docente específica.
O documento Vozes da educação apresenta quatro estratégias de adaptação de práticas pedagógicas. A primeira se desenvolveu em forma de acampamentos de aprendizagem, ao longo do ano, com duração total variando de 30 a 50 dias. Os estudantes foram agrupados segundo o nível de aprendizagem e participaram de aulas por duas ou três horas por dia, durante seis a dez dias consecutivos. Após esse “intensivão” eles retomaram as aulas regulares. No Quênia as crianças participaram de dois acampamentos de 20 dias, com intervalo de 10 dias entre o primeiro e o segundo.
A segunda estratégia foi praticada na Colômbia, por meio de círculos de aprendizagem, com estudantes de 6 a 15 anos de idade em distorção idade-série ou vítimas de crises humanitárias. As atividades se desenvolviam em centros comunitários, igrejas ou casas de famílias. Não constituiu um sistema paralelo: tal estratégia foi reconhecida pelo Ministério da Educação e tinha como objetivo facilitar a transição da criança para a escola regular. Os professores eram tutores juvenis, que receberam formação para essa atuação.
A terceira estratégia ocorreu na Etiópia que, por conta da pandemia, agrupou seus estudantes de 4 a 6 anos de idade em “micro turmas”. As aulas aconteceram ao ar livre, com a duração de 2 a 4 horas. Para esse tipo de atuação os professores receberam formação específica em linguagem e matemática, durante 21 dias.
Como quarta estratégia de aceleração da aprendizagem, o Vozes da educação inclui a desenvolvida pelo Chile, que lançou em 2020 uma rede de tutoria denominada “Tutores para Chile” (P. 32). O programa oportunizou a atuação de estudantes do curso de pedagogia como tutores de alunos do Ensino Fundamental e Médio, em apoio ao trabalho desenvolvido por professores regentes. Em 2020, mais de 7.600 estudantes de 25 faculdades de todo o país participaram da iniciativa.
Também a Austrália desenvolveu programa de tutoria para apoiar a recomposição de aprendizagem em linguagem e matemática em escolas vulneráveis, localizadas em regiões desfavorecidas ou em comunidades indígenas. Esse programa investiu 600 milhões de dólares australianos (P. 33).
Nas várias estratégias de aceleração das aprendizagens a avaliação é apresentada como “espinha dorsal” (p. 22). O programa Teaching at the right level, implementado em Botswana, Costa do Marfim, Gana, Índia, Quênia, Madagascar, Moçambique, Niger, Nigéria, Uganda e Zâmbia, funciona a partir da divisão dos estudantes em grupos com base nos níveis de aprendizagem, identificados pela avaliação diagnóstica e não por série ou idade. Ao longo do programa a avaliação é constantemente realizada “para medir o desempenho dos estudantes, que avançam de acordo com o progresso na aprendizagem” (p. 20).
O instrutor deixa as crianças “ditarem o ritmo ao longo da avaliação, incentivando e elogiando, independentemente de seu desempenho. (p. 23). Elas são reavaliadas regularmente e passam de nível à medida que progridem.
O item estratégias de avaliação diagnóstica, que integra o documento, inclui formatos variados, adotados por diferentes países. A Irlanda desenvolveu “estratégias diagnósticas para o período pós pandemia em que recomenda que professores e gestores estabeleçam contato com os pais e responsáveis dos alunos a fim de obterem informações sobre a continuidade educacional durante o ensino remoto”, por meio de um processo coletivo de co-investigação, para que conheçam melhor seus alunos” (p. 46).
Nos Estados Unidos alguns estados optaram por realizar avaliação diagnóstica por meio de aplicativos de smartphones. Alguns projetos utilizaram inteligência artificial para desenvolver avaliações diagnósticas, “facilitando o trabalho de personalização por um lado, mas elevando o custo de aplicação, por outro” (p. 45).
Quênia, Tanzânia e Uganda, desde 2009, entregam questionários nas residências dos alunos, a fim de monitorarem as competências básicas de leitura e escrita dos estudantes de 5 a 16 anos (P. 45)
“Botswana utilizou de ligações telefônicas para conseguir contato com os alunos e, então, aplicar avaliações diagnósticas” (p. 45).
Dentre as estratégias de gestão escolar consideramos importante apresentar a desenvolvida pela Irlanda, destinada a “orientar professores e gestores quanto ao processo de recuperação de aprendizagens, a partir da criação de um guia de apoio curricular” (p. 72). O currículo previsto para 2020-2021 sugere que os professores irlandeses dediquem pelo menos um mês à revisão dos conteúdos e habilidades trabalhadas antes do fechamento das escolas. O objetivo dessa ação é “nivelar os estudantes e apontar as áreas merecedoras de maior ou menor atenção por parte dos professores em sala de aula” (p. 72). Cada professor estabelece a melhor forma de abordar os conteúdos, desde que ofereça aos alunos experiências de aprendizagem ativas e colaborativas, o que inclui o uso didático da gamificação, tecnologias digitais múltiplas, rodas de discussões e debates, bem como trabalhos de investigação entre pares ou em pequenos grupos. Por outro lado, deve-se evitar que o período de retorno às aulas se restrinja à remediação de aprendizagens, pois isso poderia reduzir o interesse dos alunos. É bastante pertinente esta observação.
Não encontramos levantamento brasileiro sobre estratégias de recomposição das aprendizagens nas escolas no período pós-pandêmico.
Somente em 28 de fevereiro de 2025 foi instituído o Decreto nº 12.391, da Presidência da República do Brasil, que cria o Pacto Nacional pela Recomposição das Aprendizagens, “tendo em vista o disposto no art. 8º, parágrafo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. O Pacto visa “assegurar padrões adequados de aprendizagem e de desenvolvimento dos estudantes da educação básica”, assim como “mitigar os impactos na oferta de serviços educacionais causados por eventos que gerem situação de emergência ou estado de calamidade pública reconhecidos pela União” (Art. 1º, parágrafo único, itens I e II). Observa-se que esse decreto se refere a quaisquer eventos que possam causar situação de emergência.
Tema central do decreto, a recomposição de aprendizagens é apresentada como um “conjunto de práticas pedagógicas e de gestão educacional que visam garantir os direitos de aprendizagem e de desenvolvimento dos estudantes” (Art. 2º, item II). Outras considerações são incluídas nas disposições gerais, dentre as quais destacamos a avaliação diagnóstica de caráter formativo, uma “estratégia de verificação, análise e compreensão dos níveis de aprendizagem e de desenvolvimento dos estudantes, consideradas as expectativas e os padrões definidos para os diferentes momentos da escolarização, com vistas a subsidiar a tomada de decisão dos docentes e das equipes gestoras” (Art. 2º, item III). Assim concebida, a avaliação diagnóstica oferece apoio à avaliação formativa, encarregada de garantir a incorporação de aprendizagens por todos os estudantes. Como o nome indica, a avaliação diagnóstica identifica as necessidades de aprendizagem para que se providenciem meios apropriados a cada estudante.
Também os mapas de progressão de aprendizagens são incluídos nas disposições gerais, considerados “instrumentos de planejamento curricular que orientam os docentes e as equipes gestoras a identificarem os estudantes em suas trajetórias de aprendizagem e a fundamentarem as decisões sobre a priorização, a flexibilização e a organização do trabalho pedagógico sobre conteúdos, habilidades e competências estruturantes para cada etapa da escolarização” (Art. 2º, item IV).
O Pacto será implementado pelo Ministério da Educação, em colaboração com os estados, o Distrito Federal e os municípios por meio de estratégias, dentre as quais destacamos: “identificar e analisar as insuficiências e a defasagem de aprendizagens dos estudantes”; “planejar e implementar ações destinadas à adaptação, à reorganização e à inovação na organização curricular dos sistemas de ensino, na proposta pedagógica de cada unidade educacional, nas práticas de gestão escolar e nas práticas pedagógicas com foco no tratamento da defasagem de aprendizagens dos estudantes; e monitorar os resultados educacionais alcançados pelas escolas e pelos sistemas de ensino na redução da defasagem de aprendizagens dos estudantes e na promoção da equidade educacional” (Art. 3º).
Dentre os princípios do Pacto citam-se: igualdade nas condições de acesso, permanência e aprendizagem dos educandos; equidade, consideradas as desigualdades presentes nas condições de oferta educativa, a diversidade e a singularidade dos estudantes atendidos, a defasagem de aprendizagens e os efeitos da vulnerabilidade social; formação integral dos educandos. (Art. 4º)
Constituem diretrizes do Pacto: “coerência pedagógica sistêmica entre seus eixos estruturantes; avaliação diagnóstica de caráter formativo, como estratégia para identificar as insuficiências e a defasagem de aprendizagens e acompanhar a progressão da aprendizagens; reorganização curricular; utilização de mapas de progressão de aprendizagens derivados dos ciclos de avaliações formativas, com vistas a promover o alinhamento da política de formação continuada ao uso pedagógico dos resultados da avaliação; centralidade dos processos de ensino-aprendizagem conforme as necessidades das escolas” (Art. 5º).
O decreto se refere a ciclo de avaliação e a ciclos de avaliação formativa, sem explicitar o significado ou o objetivo de cada denominação, o que pode causar incompreensão. Nosso entendimento de ciclo de avaliação formativa é apresentado e discutido no Caderno Pedagógico com o título – Ciclo da avaliação formativa: fortalecedor das aprendizagens dos estudantes e dos professores, publicado pelo GEPA, neste site.
Por meio desse Pacto o Ministério da Educação “prestará apoio técnico e financeiro para fomentar a formação continuada de professores e gestores educacionais, com vistas à criação e ao fortalecimento das condições objetivas para a realização de práticas pedagógicas com foco nas insuficiências e na defasagem de aprendizagem identificadas no processo de avaliação” (Art. 12). Além disso, o MEC “apoiará as ações existentes e proporá novas estratégias para a formação de professores e gestores, alinhadas às orientações do Pacto (Art. 10).
Meses após a divulgação do Pacto Nacional para a Recomposição das Aprendizagens, ainda em 2025, o MEC divulgou o Guia de Avaliação e Mediações Pedagógicas para Recomposição das Aprendizagens, cujo foco é “o eixo avaliar, com ênfase no uso pedagógico das avaliações diagnósticas, formativas e somativas, promovendo a articulação entre diagnóstico, planejamento pedagógico e estratégias de intervenção” (BRASÍLIA, MEC 2025, p. 5). A melhor redação seria: … com ênfase no uso pedagógico da avaliação diagnóstica, da avaliação formativa e da avaliação somativa. Justificativa: mesmo articuladas, cada uma delas cumpre propósitos próprios. No plural, a palavra avaliação costuma ser entendida como prova. Além disso, avaliação, no singular, diz respeito ao processo avaliativo, tema do documento.
No contexto da recomposição das aprendizagens a avaliação ocupa lugar de destaque pela sua presença no decreto que institui o Pacto Nacional pela Recomposição das Aprendizagens e por constituir o tema central do Guia de Avaliação e Mediações Pedagógicas para Recomposição das Aprendizagens. Estrategicamente ela se insere em vários dos artigos que estruturam este documento. A sua função diagnóstica desempenha papel relevante: identifica os estudantes que apresentam necessidades de aprendizagem, aos quais cada professor e a escola darão atenção especial. Esta parece ser a intenção do Guia. Contudo, este documento comete engano que poderá comprometer a compreensão do significado de avaliação para as aprendizagens como processo por professores de todo o país, ao referir-se a “avaliações”, no plural, em grande parte do texto, como sinônimo de recursos avaliativos ou provas, como no trecho seguinte, da p. 5: “O Guia aborda também a relação intrínseca … permitindo que gestores, professores e demais equipes escolares utilizem os dados da avaliações como base para decisões pedagógicas efetivas”. Na p. 6 há um item que se refere à organização das avaliações. Na p. 8 têm início “Recomendações para organizar e utilizar avaliações no contexto da recomposição das aprendizagem”. Uma delas inclui orientações referentes à “preparação para aplicação das avaliações”; à “análise dos dados gerados pelas avaliações realizadas em sala de aula; às “avaliações diagnósticas e formativas”; e ao “uso eficiente das avaliações no contexto da recomposição das aprendizagens”. O Pacto terá de investir fortemente na formação continuada de professores em avaliação.
O Guia destina-se a “apresentar estratégias para apoiar iniciativas de aprendizagem focadas em recomposição das aprendizagens; apoiar a organização dos processos para aplicação das avaliações e análise dos resultados para implementação de ações de mediações pedagógicas; trazer sugestões de como organizar e viabilizar processos avaliativos e o uso pedagógico dos resultados para planejar e desenvolver mediações pedagógicas” (p. 6). Um guia de avaliação constitui um documento orientador do seu desenvolvimento, não podendo confundir avaliação com recursos, como prova. Não se aplicam avaliações. Quando nos referimos a procedimentos de avaliação, como prova, devemos usar esta palavra. Sendo um guia, este documento orientará o processo avaliativo nas escolas de todo o país. Por isso, requer clareza.
A avaliação é apresentada no Guia como elemento central do processo educacional, funcionando “como um mecanismo de diagnóstico, regulação e validação das aprendizagens e práticas pedagógicas”. Transcende a mera atribuição de notas, destaca o documento. Presta-se a identificar lacunas, promover meios de removê-las, reconhecer avanços e promover a adaptação das práticas pedagógicas às necessidades específicas dos estudantes (p. 7). Embora o texto não explicite, esta é a avaliação formativa. Como ressalta Perrenoud, “a formação de professores trata pouco da avaliação e menos ainda da avaliação formativa” (1999, p. 16. Por isso, documentos como o Guia assumem compromisso com os saberes que estão veiculando.
A recomposição das aprendizagens transcende a simples recuperação de estudos, afirma o Guia, voltando-se para a “retomada da confiança do estudante em sua capacidade de aprender” , promovendo seu engajamento escolar (p. 8). Contudo, o documento não aponta os diferentes recursos que as escolas poderão utilizar. Sobre este tema recomendamos a leitura do livro Lugar da avaliação nos Projetos Político-Pedagógicos de escolas públicas do Distrito Federal (Villas Boas et al, 2025).
Em todo o documento encontramos a palavra “avaliações” parecendo referir-se a recurso, provavelmente prova, o que poderá acarretar incompreensões pelos leitores. Como processo de investigação das aprendizagens conquistadas pelos estudantes a palavra avaliação não tem plural. O item “Recomendações gerais para organizar e utilizar avaliações no contexto da recomposição das aprendizagens”, além de usar essa palavra no plural, inclui, na p. 9: “caso a rede de ensino opte por implementar um processo de avaliação diagnóstica e formativa centralizada …”. Indagamos: o que se entende por avaliação formativa centralizada? Esta afirmação não condiz com o propósito desta função avaliativa. Ainda sobre a avaliação formativa, um dos cuidados mencionados deixa dúvida: “A avaliação formativa requer atenção para evitar excessos ou insuficiências” (p. 13). O que seriam excessos e insuficiências? Não são enumerados. Embora reconheçam a inexistência de um modelo de ação, regra ou técnica que garantam a prática da avaliação formativa, Villas Boas e Soares apontam iniciativas que poderão trazer contribuições: “permanente orientação ao estudante; diagnósticos e intervenções sistemáticas, variabilidade didática, análise do desempenho dos estudantes em diferentes momentos, feedback constante, rubricas de avaliação, letramento em avaliação, variação de atividades/procedimentos avaliativos, avaliação da escola pelo seu coletivo, atitude investigativa, avaliação somativa desvinculada de classificação dos estudantes” (VILLAS BOAS; SOARES, p. 48-50, 2025).
O Guia justifica que, no Brasil, em “função das avaliações externas ou de escala nacional e subnacional, passou-se a adotar alguns termos, tais como avaliação diagnóstica, formativa e somativa também para processos realizados pela rede em relação às escolas”, como avaliação diagnóstica da rede, avaliação formativa da rede e avaliação somativa da rede (p. 21). O documento exemplifica : “se a rede propõe uma prova para todos os estudantes de todas as suas escolas no início do ano ou do semestre, essa ação se denomina avaliação diagnóstica de rede (p. 21). Por outro lado, “se a rede propõe, oficialmente, provas ou testes periódicos e centralizados para os estudantes de todas as escolas (bimestrais, trimestrais ou semestrais), essa ação se convencionou chamar de avaliação formativa da rede” (p. 21). O mesmo documento indica que ela “acontece durante o processo de aprendizagem, oferecendo devolutiva contínua para a rede, as escolas e os professores em sala de aula”. Portanto, também esta é uma ação compreendida como avaliação diagnóstica.
A função formativa da avaliação é praticada pelos professores junto a seus estudantes continuamente, por meio de todas as atividades realizadas e não somente por meio de provas, com vistas à incorporação de aprendizagens por todos eles.
A avaliação formativa é “essencialmente diagnóstica e contínua” (VILLAS BOAS, 2025, p. 49). Não tem hora marcada para acontecer. As funções diagnóstica e formativa “se imbricam, uma fortalecendo a outra. Na obra acima indicada, observamos essa complementaridade na figura sobre o ciclo da avaliação formativa” (p. 50).
O Guia perdeu a oportunidade de constituir-se um documento orientador do desenvolvimento das funções diagnóstica, formativa e somativa da avaliação nas escolas de educação básica de todo o país. Pesquisas têm demonstrado quão frágil tem sido a formação inicial de professores em avaliação. Documentos como este podem contribuir para a formação continuada dos profissionais da educação, desde que organizados com qualidade técnica.
Dentre os resultados e impactos esperados pela utilização do Guia em análise incluem-se: “formação de professores com base em dados concretos” e “criação de uma cultura de avaliação formativa e devolutiva contínua”. Para tanto, o Guia requer revisão de conceitos e intenções, dentre eles, de avaliação e de suas funções: diagnóstica, formativa e somativa. O tema avaliação para as aprendizagens não tem recebido a devida atenção em cursos de formação inicial e continuada de profissionais da educação. Apenas a produção de dados sobre o desenvolvimento do trabalho pedagógico nas escolas de educação básica não resultará em avanços. Dados são importantes, mas por si só não provocam mudanças.
À guisa de conclusão
A pandemia da Covid 19 ensejou a instituição do Pacto Nacional pela Recomposição das aprendizagens e a formulação do Guia de avaliação e mediações pedagógicas para recomposição das aprendizagens, documentos organizados pelo MEC. Cabe aos sistemas de ensino promoverem a discussão sobre esses dois documentos junto às suas equipes e encaminharem suas dúvidas e propostas de reorganização às equipes dos órgãos centrais. Esse é o caminho democrático de construção de aprendizagens.
O retorno às aulas após o período agudo da pandemia da Covid 19 nos trouxe lições. Em primeiro lugar, aprendemos que a recomposição das aprendizagens não acontece somente em momentos de crise, como a que vivenciamos. As escolas já a desenvolviam, com diferentes denominações, mesmo sendo algumas delas consideradas inadequadas (recuperação, intervenção, correção idade-série, aceleração etc). A volta às aulas se valeu e ainda se vale de ações variadas com o objetivo de se manterem em dia as aprendizagens dos estudantes.
Em segundo lugar, percebemos que a recomposição das aprendizagens constitui um amplo processo que abriga atividades diversas. No caso do Distrito Federal, em pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos e Pesquisa Avaliação e Organização do Trabalho Pedagógico – GEPA, em 2023 (VILLAS BOAS, 2025), sobre o lugar da avaliação nos projetos político-pedagógicos de escolas públicas do DF, encontramos as intervenções pedagógicas nomeadas por eles como: projeto interventivo, estudos de recuperação, reforço, reagrupamentos, projeto SuperAção e recomposição das aprendizagens. Esta última não era conhecida anteriormente. Foi incluída quando as aulas foram retomadas presencialmente, após o período crítico da pandemia. Somente em 2025 ela passou a ser objeto de um documento orientador da sua prática, no qual é apresentada “como uma estratégia permanente na organização do trabalho pedagógico, distinta, mas complementar à recuperação das aprendizagens” (SEEDF, p. 9). As duas compartilham os mesmos objetivos: “assegurar que todos os estudantes tenham acesso ao conhecimento, alcancem os objetivos de aprendizagem e desenvolvam as habilidades essenciais para sua formação” (p. 10). O documento apresenta o que denomina de características próprias de cada uma delas. Contudo, percebe-se que a única diferença encontra-se na base legal da recuperação das aprendizagens: sua obrigatoriedade imposta pela Lei de Diretrizes e Bases (1.996, artigo 24, inciso V), que poderia ser contornada incluindo-a como uma das ações obrigatórias da recomposição das aprendizagens.
A terceira lição advinda do retorno às aulas presenciais e talvez não percebida pelas escolas é a importância do par avaliação diagnóstica e avaliação formativa. As atividades de recomposição das atividades em contextos de crise, resumidas anteriormente, nos levam a crer que essas duas funções avaliativas tenham atuado para direcionar o trabalho empreendido por vários países, embora a avaliação formativa não tenha sido mencionada diretamente. Não basta identificar necessidades de aprendizagem. É necessário desenvolver esforços para que as aprendizagens sejam incorporadas por todos os estudantes. A combinação avaliação diagnóstica/formativa ocupa lugar estratégico na ampliação das aprendizagens de todos os estudantes.
O Diagnóstico Abrangente de Aprendizagem desenvolvido no Chile constitui um exemplo da parceria avaliação diagnóstica e formativa em busca das aprendizagens dos estudantes. Seu objetivo é “ajudar as escolas a monitorarem a aprendizagem socioemocional e acadêmica de seus alunos por meio da aplicação de três avaliações ao longo do ano letivo: Diagnóstico (no início), Monitoramento Intermediário (ao meio do ano) e Avaliação de Encerramento (ao final do ano). Com esses resultados, e para além das informações internas de que as escolas dispõem, espera-se que os gestores e docentes tomem decisões pedagógicas pertinentes e oportunas, para que possam identificar os alunos que mais necessitam de apoio” BACILA, (p. 46). Ao referir-se a “avaliações”, no plural, a autora sugere o uso de provas. Como ela não justifica, preferimos entender que os resultados das três provas não serão considerados isoladamente, mas serão conjugados às “informações internas de que as escolas dispõem, para que possam ser tomadas decisões pedagógicas pertinentes e oportunas, para que possam identificar os alunos que mais necessitam de apoio” (P. 46). Assim fica configurada a parceria avaliação diagnóstica-formativa.
Os relatórios e estudos sobre as atividades pedagógicas desenvolvidas no período pós-pandêmico nos trazem reflexões importantes sobre o processo avaliativo: o reconhecimento de que os estudantes têm diferentes necessidades de aprendizagem e que elas devem ser atendidas o quanto antes, para que se garanta a continuidade do processo; a necessidade de a recomposição das aprendizagens ser adotada continuamente; a importância de as funções diagnóstica e formativa da avaliação caminharem juntas; o entendimento de que o engajamento familiar no desenvolvimento do trabalho pedagógico e, de modo particular, nas atividades avaliativas da escola é fundamental; a relevância do projeto político-pedagógico da escola que, reconstruído coletivamente a cada ano, orienta as atividades de aprendizagem e avaliação e empodera todos os que o vivenciam.
Para reflexão:
- A recomposição das aprendizagens ainda é uma atividade nova para as escolas. Constitui um amplo processo composto por ações voltadas para a identificação das necessidades de aprendizagem dos estudantes, para a seleção dos meios mais adequados para atendê-las e para a formulação do processo avaliativo condizente com os objetivos que se quer alcançar. Integra o projeto político-pedagógico da escola, atualizado a cada ano, em função das necessidades de aprendizagem dos estudantes. Todos eles têm direito a recompor suas aprendizagens, cabendo às escolas oferecerem os meios mais adequados às necessidades de cada um. Você já conhecia a expressão recomposição das aprendizagens? Já desenvolveu atividades pedagógicas com esse propósito? Em caso positivo, compartilhe conosco suas experiências.
- A recomposição das aprendizagens se vale da avaliação diagnóstica contínua, para que se identifiquem as necessidades dos estudantes e se organize o processo para atendê-las. Se você, leitor/a, está atuando em escolas, considera este caderno útil para a organização do processo de recomposição das aprendizagem? Quais aspectos poderiam ser acrescentados?
- O processo de recomposição das aprendizagens se justifica como uma ação estratégica e ética para garantir o direito às aprendizagens por todos os estudantes. Enquanto as atividades de aprendizagem se desenvolvem, as funções diagnóstica e formativa da avaliação atuam, de modo a garantirem o sucesso de todos eles. Para que isso aconteça, os professores se mantêm alerta quanto ao compromisso da avaliação formativa, aliada das aprendizagens de todos os estudantes. A recomposição das aprendizagens não se contenta com notas ou resultados, mas, sim, com a incorporação de aprendizagens. Assim acontece na escola onde você atua?
- A recomposição das aprendizagens integra o projeto político pedagógico da escola. Como esse projeto é construído na escola onde você trabalha? Como é nele inserida a recomposição das aprendizagens? Quais são seus propósitos?
- Você já conhecia os documentos orientadores da recomposição das aprendizagens analisados neste caderno? Eles oferecem contribuições ao planejamento das atividades de recomposição das aprendizagens? Quais aspectos poderiam ser acrescentados?
- Observe o título deste caderno pedagógico. O seu conteúdo e suas análises justificam a afirmativa de que a avaliação constitui espinha dorsal de programas de recomposição das aprendizagens? O que poderia ter sido incluído?
- A discussão promovida por este caderno atendeu suas expectativas? Em que sentido?
Referências
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PERRENOUD, Philippe. Da excelência à regulação das aprendizagens: entre duas lógicas. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.
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