Enílvia Rocha Morato Soares
Mestra e doutora em Educação
Integrante do Grupo de Pesquisa em Avaliação e Organização do Trabalho Pedagógico (GEPA)
Ano letivo diz respeito ao período em que acontece o processo formal de ensino desenvolvido na escola organizado a partir da necessidade de atender a um número maior de estudantes em um menor espaço de tempo[1], o que demanda organizar turmas “homogêneas” (idade e nível de aprendizagem similares), criar currículos para cada estágio e estabelecer um calendário fixo de progressão. Está, portanto, atrelado à seriação, uma vez que a consolidação da organização da escola em séries só foi possível porque o ano letivo já existia, definindo o tempo destinado para cada etapa a ser cursada.
Mesmo na organização escolar em ciclos, o percurso escolar acontece em anos letivos. O que difere são as decisões quanto à progressão ou não de estudantes que só acontecem ao final de cada ciclo, em geral, a cada 3 anos de estudo. Como no Brasil as séries costumam vir “embutidas” nos ciclos, as discussões entre os participantes do conselho de classe realizado ao final de anos letivos em que não é permitida a retenção de estudantes inclui reclamações de professores/as diante da impossibilidade de impedir o avanço de estudantes destituídos das aprendizagens necessárias para cursarem o ano letivo seguinte.
Seja na seriação ou nos ciclos, os conselhos de classe constituem instâncias que cumprem funções essencialmente avaliativas. Quando conduzidos na perspectiva de contribuir para o avanço de todos os estudantes, a avaliação formativa se faz presente, informando as aprendizagens já construídas pelos estudantes e apontando caminhos para que se consolidem as que ainda não o foram. A análise realizada pelo coletivo escolar possibilita apreender melhor a realidade e projetar ações mais apropriadas a esse contexto.
Desse modo, a avaliação, em conexão com os objetivos, constitui o fio condutor que perpassa o trabalho pedagógico desenvolvido em sala de aula e na escola, retroalimentando-o continuamente. Os conselhos de classe constituem momentos privilegiados para a viabilidade desse processo. Guiadas pelo Projeto político-pedagógico da escola, as reflexões e decisões dos participantes dos conselhos de classe realizados ao longo do ano letivo se pautam pelo compromisso ético e político de possibilitar o acesso de todos os estudantes às aprendizagens necessárias para que se formem crítica e integralmente.
A organização do calendário escolar em anos letivos associada à ideia da organização da escola em séries, reproduzida historicamente por mais de um século, pode culminar em conselhos de classe dissociados da avaliação formativa, especialmente os realizados ao final do ano letivo, o que justifica destacarmos aqui a sua importância.
Assim como nos demais conselhos realizados ao longo do ano escolar, o último deve compor-se de análises e proposições que contribuam para a melhoria do trabalho pedagógico e, em decorrência, para o avanço das aprendizagens dos estudantes e de toda a escola. O ano letivo se encerra, mas o ensino e as aprendizagens que na escola se processam se movimentam continuamente, exigindo que o conselho de classe final também se oriente por esse propósito. O que se questiona é: por que o conselho, em particular os que acontecem ao final do ano letivo, se dissociam da ideia de ininterrupção do processo pedagógico?
A instituição escolar não funciona refratária ao contexto em que se encontra imersa. Em uma sociedade dividida em classes como a nossa, a escola imbui-se de objetivos necessários à manutenção da hegemonia dominante. A competição entre desiguais que culmina na seleção e exclusão de parte dos sujeitos se reflete na escola impedindo o progresso de todos os estudantes. A seriação que legitima o insucesso de parte dos estudantes sob o discurso do esforço pessoal exemplifica a ingerência da estrutura social mais ampla sobre a escola, naturalizando e potencializando desigualdades. A avaliação, incluindo a que acontece nos conselhos de classe finais, se encarrega de fazer cumprir as funções impostas socialmente (Freitas, et al, 2009).
Mas isso não acontece sem resistências e conflitos. Cabe a nós, educadores, uma vez esclarecidos, envidarmos esforços em direção contrária, visando desafiar a lógica social dominante. Isso implica o uso da avaliação para induzir melhorias, promover a participação e a justiça.
Nessa direção, o conselho de classe final deve ser planejado visando à continuidade do processo de escolarização. Decisões quanto à aprovação/reprovação de estudantes (quando exigidas legalmente) devem ser secundarizadas, priorizando análises que contribuam para que o trabalho pedagógico do ano seguinte se desenvolva com o propósito de possibilitar a todos o acesso às aprendizagens ainda não conquistadas. Embora a escola organizada em ciclos favoreça essa dinâmica, ela é possível também na escola seriada, desde que conte com profissionais conscientes de seu compromisso com a democratização do saber.
Referência:
FREITAS, Luíz Carlos de; SORDI, Mara Regina Lemes de; MALAVASI, Maria Márcia Sigrist; FREITAS, Helena Costa Lopes de. Avaliação Educacional: Caminhando pela contramão. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009.
[1] A proposta de ensino simultâneo, que possibilitou a superação do ensino individual iniciou-se no Brasil em meados do século XIX (SILVA, 2008).